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A ambulância se perdeu: a história do acidente de Jackie Stewart

A ambulância se perdeu: a história do acidente de Jackie Stewart

Logo depois da celebração do pódio, das entrevistas e da festa com suas equipes, os três primeiros colocados no GP da Hungria, neste domingo, embarcaram de volta a suas casas. Lewis Hamilton, da Mercedes, o vencedor, e Max Verstappen, Red Bull, segundo colocado, voaram para Nice porque residem em Mônaco, localizada ao lado da cidade francesa. Sebastian Vettel, da Ferrari, terceiro, seguiu para Zurique, na Suíça, pois mora próximo.

Eles e seus 17 colegas, pilotos também da F1, poderão repousar tranquilos nas três semanas de férias impostas pela FIA no calendário da F1.

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Mas nem sempre foi assim na história de 70 anos da competição. Enquanto hoje o receio de um acidente sério gera pouca preocupação, nos anos 50, 60 e 70 nenhum piloto conseguia relaxar entre as corridas. Os riscos eram impressionantemente elevados.

Emerson Fittipaldi iniciou sua trajetória na F1 em 1970. Converso regularmente com ele, foi meu ídolo na infância e uma das razões de eu estar há 30 anos me deslocando com a F1 pelo mundo como jornalista. Emerson costuma dizer: “Nós tirávamos a tradicional foto dos pilotos juntos, antes da primeira etapa do mundial sabendo que na foto da última corrida um ou dois não estariam lá. Por terem morrido”.

A próximo GP do campeonato será na Bélgica, Circuito Spa-Francorchamps, à moda antiga, largo, rápido, favorito da maioria dos pilotos, entre os dias 30 de agosto e 1º de setembro.

Impossível ser mais irresponsável

Aproveito o gancho de a prova ser em Spa para contar aqui uma história incrível que me foi contada por ninguém menos de Sir Jackie Stewart, o escocês campeão do mundo em 1969, com Matra, 1971 e 1973, Tyrrell. Ele a viveu exatamente na pista belga construída em meio à cadeia de montanhas das Ardenas, usando trechos das estradas locais.

É uma fotografia precisa da irresponsabilidade e inconsequência com que a segurança na F1 era tratada naquele tempo, 1966. Junto de Stewart competiam, por exemplo, o seu companheiro na BRM, Graham Hill, outro escocês lendário, Jim Clark, Lotus, John Surtees, Ferrari, Jack Brabham e Denis Hulme, Brabham, e Jochen Rindt, Cooper. Todos já eram ou viriam a ser campeões do mundo. “Era uma geração talentosa”, sempre me diz Stewart, com quem mantenho ótima relação profissional.

Resgato aqui a entrevista que fiz com ele em 2016 para lembrar os 50 anos do seu terrível acidente no Circuito Spa-Francorchamps. Não fosse pela tragédia que quase aconteceu, poderíamos rir da narrativa de Stewart, como ele fez. Respeitosamente me contive.

O GP da Bélgica de 1966 foi a segunda etapa do campeonato, disputado dia 12 de junho. “Eu havia vencido a etapa de abertura, em Mônaco, liderava o Mundial, e aquele era meu segundo ano, apenas, na F1”, lembrou Jackie Stewart. “Havia completado 27 anos um dia antes (no sábado).” Dia 11 de junho agora Stewart completou 80 anos.

Stewart fala da prova de 1966: “Chovia realmente muito na hora da largada, como é normal em Spa. Corríamos ainda na pista antiga, bem mais longa que a atual”. O traçado daquela edição tinha 14.080 metros, enquanto o utilizado agora mede 7.004 metros.  A última edição do GP da Bélgica no circuito longo foi em 1970.

Condições mínimas 

Hoje há limite de volume de água na pista, de visibilidade para o diretor de prova autorizar a largada, além do safety car conduzido por um piloto profissional para ter uma referência da condição do asfalto, do clima.

Para se ter uma ideia do volume de água que havia na hora da largada da edição de 1966 do GP da Bélgica, oito dos 15 pilotos no grid abandonaram na primeira volta. Com exceção de Clark, com problemas no motor Climax da sua Lotus, todos os demais em razão de perderem o controle do carro na chuva intensa. “Dentre eles, eu, terceiro no grid”, lembra Stewart. “Aquaplanagem.”

A sequência da narrativa de Stewart é impressionante: “Ao sair da pista, como não havia guardrail bati num poste e capotei. E lá fiquei, dentro do carro, de rodas para o ar, por uns 20 minutos.”

Quem o ajudou a sair daquela situação perigosa, pois os carros pegavam fogo com facilidade, foram os dois companheiros de equipe, o inglês Graham Hill e o norte-americano Bob Bondurant, que pararam seus carros ao verem a BRM de Stewart voar. “Pode parecer incrível, mas não havia comissários ali”, diz o escocês.

Comunicação na pista, fundamental

Hoje há um número elevado de postos de comissários ao longo dos circuitos e todos interligados com a direção de prova através de rádio. As ações são coordenadas da torre da direção de prova.

“Em 1966, o diretor de prova soube que vários carros saíram da pista ao deparar que apenas sete pilotos completaram a primeira volta”, contou-me Herbie Blash, vice-diretor de prova da F1 de 1995 a 2016.

“Foi apenas nesse momento que ordenaram que a ambulância deixasse os boxes para ir procurar os acidentados”, contou Stewart. Ele lembra mais do seu acidente, agora com indignação. “Com o impacto, o chassi do meu carro dobrou e era preciso tirar o volante para eu sair do cockpit.

Além de Graham (Hill) e Bob (Bondurant) , havia torcedores ajudando-os a colocar o carro na posição normal e me tirar do cockpit.” O grupo improvisado de resgate compreendeu que teria de dispor de equipamento. Tinha gente acampando por perto e um dos campistas apareceu com uma caixa de ferramentas.”

Com chaves de boca soltaram os parafusos do volante da BRM. Isso permitiu a extração de Stewart do cockpit. Suas pernas estavam sendo pressionadas pelo volante. “Mantive-me consciente o tempo todo. Sentia muitas dores e a pele queimando.”

Esconde, esconde

Mike Doodson, jornalista da F1 desde os anos 60, lembra de Bondurant lhe dar mais detalhes do atendimento. “O macacão de Jackie estava encharcado de gasolina, queimando sua pele. Bondurant o retirou, deixando Jackie nu.”  A essa altura, já o haviam levado para uma área coberta de uma pequena propriedade rural, ao lado da pista que era, na realidade, uma estrada de uso normal fora dos horários de treinos e corrida.

“Ao saber que um piloto acidentado estava naquela propriedade precisando de ajuda, duas freiras da região foram tentar ser úteis. Quando Bondurant viu as freiras se aproximando, tratou de cobrir o que dava do corpo nu de Stewart com o macacão, lembra Doodson.

Os acidentados eram atendidos precariamente, sem critério médico algum, muitas vezes agravando as lesões sofridas.

Motorista da ambulância se perde

Jackie Stewart prossegue: “Finalmente chegaram uma ambulância e um carro de polícia. O policial nos guiaria até o hospital. Mas o policial se perdeu, não sabia como chegar no hospital e naquelas hesitações todas o motorista da ambulância também se perdeu do carro de polícia”. Apesar de 50 anos depois, em 2016, o escocês faz cara de quem está pensando: dá para acreditar? E não acabou.

O motorista da ambulância disse a Stewart que sabia onde havia um hospital e o levou para lá. “Quando chegamos, retiraram a maca da ambulância e me puseram no chão de cimento, na entrada do hospital. Lembro de ter visto ao meu redor várias pontas de cigarro.”

Com o semblante bem sério, o escocês afirmou: “A partir daí, disse a mim mesmo que alguém deveria fazer algo para acabar com aquilo. A maneira como agiram comigo fez com que eu passasse a liderar uma cruzada para termos um mínimo de segurança. Infelizmente demorou para termos menos mortes, perdi muito amigos ainda nos anos 70”.

As consequências para Jackie Stewart foram menores das esperadas. Sofreu fratura no pulso direito, queimaduras dispersas na pele e escoriações generalizadas. Um mês depois, dia 16 de julho, o piloto alinhou sua BRM para a largada do GP da Grã-Bretanha, em Brands Hatch. “Não corri uma etapa, na França.” Aquela prova em Spa foi vencida por John Surtees, com Ferrari.

Jackie Stewart no carro da BRM que quase o matou em 1966.

1994, o início de uma nova era

Mas o que de fato levou a FIA e os profissionais do evento a encararem a segurança como prioridade número 1 foram os acontecimentos no GP de San Marino de 1994, em Ímola, na Itália. No sábado morreu Roland Ratzenberger, piloto da Simtek, e no domingo, Ayrton Senna, Williams, vítimas de acidentes.

O médico-chefe da F1, o neurocirurgião inglês Sid Watkins, criou o Instituto FIA. Eu o entrevistei muitas vezes. Veja o que de mais importante me disse: “Iniciamos uma nova era na segurança do automobilismo. Até então as decisões, as medidas adotadas seguiam a experiência dos profissionais do evento e a intuição de alguns engenheiros”.

E prosseguiu: “A partir daí tudo passou a ser tratado com critério científico. Mudamos a forma de pensar a segurança. Criamos uma comissão para estudar as suas várias áreas, como a dos carros, circuitos, a indumentária dos pilotos, o serviço de resgate, atendimento médico etc”.

A experiência traumatizante de Jackie Stewart em Spa seguida da sua corajosa iniciativa levaram não apenas a F1, mas o automobilismo, em geral, a oferecer segurança extremamente mais elevada que no início de sua carreira.

Stewart comenta: “Quando se está a mais de 300 km/h, tudo pode acontecer. Mas se sabemos de antemão o que é mais provável de ocorrer e desenvolvermos formas de encarar esses riscos, a tendência é as consequências serem muito menores. É essa a realidade que vivemos hoje, embora seja haja o que melhorar.”

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